quinta-feira, 7 de junho de 2012

Aconteceu no império

          Os dois homens magros, porém fortes, desciam com dificuldades a escada feita de troncos finos, pela pequena abertura que era a única ligação entre o mundo exterior e as profundezas. Carregavam um pesado saco de tecido rudimentar, todo sujo de sangue já coagulado.

            Ao chegarem no subterrâneo, foram recebidos pelo zelador da catacumba:

            - Ora, veja! Pelo jeito houve festa no circo Cesárius.

            - Nem tanto, festinha - Disse o primeiro carregador - Quatro ou cinco gladiadores, marmelada pura. A única animação do público foi este crist...

            - Shh!Cuidado. - Saltou o zelador, preocupado - Não sabes que esta palavra é proibida?

            - Ah, desculpe, esqueci. Você deve ser novo por aqui - disse o mais simpático dos visitantes, completando:

            - Que é que tem? Só estamos nos três aqui, e é claro o infeliz aqui, ou o que sobrou dele.

            - Pô! Sacanagem! Leões, de novo? É igual em todo o lugar. Será que não têm criatividade para inventar atrocidades novas. Apedrejar, queimar vivo, essas coisas?

            Ainda, o carregador.

            - Você é bem criativo, novato.

            - Novato nada. Estou no serviço desde muito jovem, quase aposentado, não fosse essa marcação comigo. E também, passo um tempão sem fazer nada. Só vez ou outra trazem esses, hã... Membros da comunidade proibida.

            - Porquê você tem tanto medo de proferir o nome do partido deles? - Perguntou o mais calado dos recém chegados.

            Alterou-se o zelador:

            - Queres que eu fale, né? Não vem, não. Basta terem me rebaixado para este lugar minúsculo.

            Meio irritado e trêmulo, prosseguiu:

            - Tu deves ser espião. Mandaram-te junto para ver se eu escorrego, digo algo comprometedor, mas sou inocente. Apenas li o bilhete e falei para os colegas. Dei um alerta, e me ferrei!

            Os dois visitantes ficaram se olhando em silêncio, enquanto o guardião da catacumba fitava, desconfiado, o caladão. O mais simpático, disse:

            - Fica frio! Ele é de confiança. Da casa, mesmo. Chapa entende? O que deu em você, homem?

            O zelador:

- Sei não. Bem, é que estão observando meu comportamento e, ando meio nervoso. Sei que os ambulácros têm ouvidos. Cada nicho pode esconder um gravador.

 Nas criptas, uma micro-câmera, por isso, quase nem durmo. E, o pior, é que não fiz nada de mais. Apenas quis ser profissional, dar uma força!

            Os homens ficaram ainda mais intrigados:

            - Anda, fala! Estamos sem entender o que dizes.

            O zelador explicou-lhes:

            - É o seguinte. Há poucas semanas que estou aqui, nesta catacumba menor. Fui rebaixado. Cheguei a ser líder da Imperial Ordem dos Guardiões das “Locus ad catacumbas”, e trabalhava na catacumba-mor, aquela grande, com tampões de mármore, e tudo o mais, sabem? Lá em Roma.

            - Sabemos. Fica na esquina da Via Ápia com a estrada que leva ao circo de Maxêncio, todos sonham em trabalhar lá. Mas e daí?

            - Pois é. Aconteceu que há pouco tempo atrás, haviam levado para lá um grandalhão chamado Tirzo, disseram que era mártir dos crist, digo, era do partido da oposição. E para impressionar a comunidade política deles, acalmar os ânimos, e tal, me mandaram “dar um trato legal” no falecido. Dizem as más línguas, que era veado, mas eu achei que era macho. Valentão mesmo. O Leão chegou a levar mais de cinco minutos para estraçalhar ele, briga feia.

            Os homens ouviam atentos, prestando atenção nos detalhes. O outro prosseguiu:

            - Parece que o crime, foi andar espalhando que o imperador estava variando. Aí, arena nele!

            O quieto, perguntou:

            - Tá. Mas qual a ligação disso com o teu problema?

            - Aí é que começou tudo. A minha falta de sorte. Cumpri as ordens. Comecei a arrumar o cara e, foi quando ajeitei as sandálias dele, que encontrei, enfiado lá no meio, um pedaço de papiro. Estava meio difícil de ler. Primeiro, porque era escrito em hebreu, depois, porque estava meio apagado pelo chulé, poeira e tal.

            - Sim, mas e o que tinha de tão importante? - Insistiram:

            - Achei que era estranho, só isso! Dizia que Nero tinha pirado. Que havia boatos estava sofrendo de Esquizofrenia Paranóica, e ia botar fogo em Roma. E era bom, que todos os filiados fugissem.

            Quiseram saber o resto:

            - Falei com o Tribuno, e disse que era bom pelo menos dar uma olhada nisso. Quem sabe, avisar o esquadrão antibombas? Talvez, deixar os bombeiros de prontidão, só para garantir. Então, foi por isso, que disseram que eu estava a tempo demais no cargo.    Que a promoção tinha subido à cabeça, e agora já estava tendo uns pensamentos subversivos. Resolvendo me transferir aqui para Arpino, no Láscio, sob vigilância.

            Tentaram confortá-lo:

            - Não liga, relaxa! Vai ver que foi armação. Estes comunistas queriam, era levantar suspeita sobre o Imperador. Isto é tática comum, para tentar desmoralizar o Estado. O Imperador é deus, e deus não ia fazer uma besteira dessas com o próprio reino.

            - Mas é que...

            - Relaxa! Você só está estressado. - O simpático disse isso, piscando o olho para o outro, e retiraram-se os dois.

Æ

            Um mês depois daquela conversa, durante a noite, houve grande tumulto na capital do Império Romano. Roma ardia completamente e, só restaram cinzas.

            Em Arpino, a notícia havia voado:

            - Eu sabia, eu sabia. Acharam que só os chefões lá de cima podem ter razão. Bem-feito. Assim aprendem a dar ouvidos aos subalternos. Gravaram isso, bobocas? Eu mereço até ser servo das Legiões, cambada de trouxas!
            Enquanto gritava, eufórico, frases de deboche, rolava pelo chão e dava cambalhotas nos corredores das galerias empoeiradas e sombrias. Ria à toa, mas ninguém ficou sabendo, pois concluíram que o caso era sem importância. Os gravadores e câmeras haviam sido retirados.

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