quinta-feira, 15 de março de 2012

e-Dependentes

            Raramente costumo escrever à moda antiga, isto porque me acostumei ao pseudo-conforto de um teclado, mas algumas vezes o faço.
Gosto da tecnologia. Procuro ver nela a evolução para a melhoria da qualidade de vida e na ampliação da comodidade dos usuários, também na conveniência.
As pessoas, graças à essas facilidades, não precisam mais sair de casa para ir à bancos, pagar contas, fazer compras e até mesmo desenvolver e manter relacionamentos, no sentido geral.
As pessoas que se encontram nas faixas dos dez aos sessenta anos estão quase à totalidade inseridas nas redes sociais conectadas. Inscritas em web sites de relacionamentos, usam celulares não apenas como instrumentos de conversação tradicional, realizando ou recebendo chamadas para falar em viva-voz com outras pessoas, mas para trocar bilhetinhos e recados eletrônicos. No caso das redes sociais que se multiplicam, mas só algumas caem no gosto do grande público, existem alguns para as pessoas buscarem relacionamentos afetivos, mas o que dá para perceber é que a prioridade nesse caso específico é o relacionamento físico. Quem sabe, talvez até aconteça a descoberta do tão esperado relacionamento baseado no sentimento. É a versão moderna da paquera, do namoro, do encontro.
Não sou conservador, mas gosto de lembrar que existem pessoas reais por trás do mundo virtual. Que existe um rosto do outro lado da tela. Uma face verdadeira, e não apenas um Facebook.
Houve um tempo em que escrever à moda antiga, usando papel e caneta ou lápis tinha seu charme e inestimável valor. Existiam carteiros que traziam “cartas” que alguém escrevia à mão. Pense no envolvimento que isso confere. Alguém sentar-se e registrar em uma folha de papel, sem timbre e sem tipos mecânicos impressos, suas palavras e pensamentos dirigidos a você. Rasgar o cantinho do envelope para não danificar o conteúdo. Saudosismo? Não.
Reafirmo que gosto da tecnologia, mas a impessoalidade que veio com ela algumas vezes me preocupa. Cada vez menos nos tornamos pessoas, mas Usernames ou Nicknames. Precisamos cada vez mais de passwords. Os sons das vozes diminuem quase que imperceptivelmente, sendo substituídas por um conjunto de caracteres. As risadas tornaram-se simplesmente “KKKs”. Se for um sorriso: J. Uma decepção: L. As cores dos cenários de nossas conversas deixaram de ser paisagens para tornarem-se planos-de-fundo.
Mas de uma coisa tenho certeza: que a tecnologia que deveria servir para aproximar as pessoas, nos torna cada dia mais distantes. Pior ainda, nos transforma cada vez mais em e-Dependentes!
Agora imagine aqueles que já são e-Dependentes. O horror que deve se abater sobre estas pessoas se surgirem crises de abstinência causadas pela falta de computadores ou celulares. E isto pode acontecer por alguns “Error Codes”. Se o e-Dependente for roubado, faltar energia elétrica ou, simplesmente por uma dificuldade financeira não conseguir pagar a conta do provedor de internet ou telefonia, acabarem-se seus créditos do celular ou mesmo se der uma pane nos equipamentos? Um surto!
Nos Facebooks e Orkuts, nunca usaremos uma velha calça desbotada ou coisa assim, nem mesmo os erros de nosso português ruim. Não precisamos de lenço nem documento. Sentamos em frente à tela e ao teclado, nunca na mesma praça, no mesmo banco, no mesmo jardim.
Conservador? Não. Saudosista? Não. Jurássico? Talvez!
O fato é que, quem cai na rede é peixe.
Afinal, qual é o timbre de sua voz, a textura de seus cabelos, o brilho real de seus olhos? Qual o aroma do ambiente agora?
Monitores tornam as pessoas intangíveis. E lembre-se: Teclado não tem caligrafia.

terça-feira, 13 de março de 2012

Um Vento no Litoral

Aurino era um homem franzino, miúdo. As pernas arqueadas, mais pelas agruras da vida rude que tivera, do que pelo peso dos sessenta e poucos anos que trazia como currículo. Vivia ali, à beira-mar, como é o sonho de muitos. Porém, o que na verdade poderia ser o utópico paraíso dos que vivem nas cidades, era para ele, como se fosse o fim da linha. Não tinha mais como migrar no rumo do sol.
            Tinha vindo da distante fronteira oeste do estado, há tanto tempo, que já nem lembrava. Talvez trinta e cinco quem sabe quarenta anos, não importava mais. Conhecia, como poucos, os sábios ensinamentos do mar. Mas todas as lições foram aprendidas, a custo de muito de sua esfiapada vida. Nunca aprendera a ler muito bem, à não ser uma ou outra placa, de letras grandes.
            Seu maior orgulho, além dos doze filhos e oito netos, e de tê-los criados, como diz - “Na base de muito carinho, respeito e uns relhaços, de vez em quando” - é relembrar que um dia teve um grande amigo. Costumava falar sempre, sobre o tal amigo. Mas ninguém acreditava. Ninguém lembrava de sua suposta passagem pelo lugar. Diziam:
            - Coitado do velho, tá caducando de novo. - Toda a vez que tocava no assunto.
            Quando havia oportunidade, contava sua história, e finalizava:
            - Foi um grande poeta que passou por aqui, amigo meu.
            Todos, sem exceção, riam ao final do relato.
            A cada ano, milhares de pessoas vinham das cidades para o veraneio, e tinham em Aurino o ajudante, jardineiro, caseiro. E, também, como pescador de profissão, o fornecedor de peixes sempre fresquinhos, “escolhidos a capricho”, como se referia ao produto para seus clientes. Fazendo de tudo, sempre para agradar. Para alguns contava sobre o tal poeta, seu amigo, sua história com ele, mas pouquíssimos o levavam a serio.
            Agora, já quase nem falava mais sobre isso.
            Em algumas vezes no bar, entre os pescadores, alguém lembrava:
            - Mas então, Aurino. Conta aquela do poeta. - E os risos tomavam o lugar, mas ele nem ligava. Era como se deixasse o corpo e mergulhasse na lembrança. E os risos iam ficando cada vez mais distantes, e ele contava.           
                                                               ¬
            Certa vez, enquanto recolhia a rede, ainda manhãzinha, percebeu que era observado por um jovem magro, de cabelos desgrenhados pelo vento permanente. Daqueles que só setembro trás, lá no sul do continente.
            O rapaz aproximou-se, e com uma saudação simpática, começou a indagar do trabalho e das coisas que o velho fazia. Como tinha adquirido a habilidade de desvendar os mistérios do mar. A voz grave, porém macia, cativaram o pescador.
           
            Naquele dia, ficaram horas ali, sentados, conversando como antigos companheiros.
            Apesar do rosto magro, ainda mais espremido, por causa daqueles óculos quadrados e pequenos, Aurino percebera, que ali estava um ser de inteligência superior.
             Perto dele, sentiu-se ainda menor. 
            As coisas que dizia, os pensamentos que expressava, sempre de forma harmônica, davam-lhe a certeza de que era doutor. Talvez, desses mais especiais, um poeta, quem sabe.
            Agora os dias, semanas, passavam mais rapidamente. Sempre às voltas com seus afazeres, reservava tempo para demoradas conversas com o moço. Instintivamente, passou a chamá-lo de Russo, por causa do ar sério e quase sempre sisudo, porém simpático. Para o marisqueiro, os russos eram um povo temível, de quem só ouvira falar em histórias de guerras. Povo de pessoas tão inteligentes, que só eles metiam medo nos americanos. E como o novo amigo não lhe dissera o nome, e ele não teve coragem de perguntar, ficou com o apelido. Ficaram verdadeiramente amigos.
            Quase sempre estavam juntos, trocavam idéias, pensamentos e impressões da vida simples de viver, tão próximo daquela imensidão, tão imprevisível quanto a própria vida.
            Já havia algum tempo, que durante as conversas entre os dois, Aurino notara que Russo, volta e meia tirava do bolso um bloco de papel, uma caneta e anotava várias das coisas que lhe eram ditas. Nunca se atreveu a perguntar, apesar da curiosidade em saber porque ele fazia aquilo. Mas um dia, Russo percebeu na fisionomia do velho homem, seu desconforto com a situação, e explicou:
            - Aurino, meu querido mestre! Vez ou outra eu anoto as coisas que me falas, pois são tão profundas e verdadeiras lições de vida, que sou obrigado a registrar. O resto guardo de cabeça.
            Sem conseguir disfarçar o orgulho, tentou manter a humildade, uma de suas características:
            - Que é isso, doutor Russo? Eu mestre? Não sei nem ler direito, quanto mais ensinar o senhor.
            - Aurino. Os ensinamentos que me transmites, não são em letras, mas no pensamento simples e fascinante que brota de tua alma, que está aí, escondida dentro deste corpo curtido pelo sol.
            O velho ficou sem entender direito, mas sentiu-se orgulhoso em ouvir aquelas palavras. E, mais importante, sentiu-se honrado, pois percebeu nelas uma sinceridade que já tinha até esquecido que existia, ainda mais vindas de um quase estranho.
            Assim foram-se alguns meses. Até que chegou o dia em que Russo anunciou que precisava ir, tinha um importante trabalho a concluir, também disse estar doente, necessitava de um tratamento sério, se bem que, pelo que dissera suas chances de recuperar-se seriam mínimas. Voltaria para sua terra, em algum lugar mais ao norte, no centro do país.
            Sem saber, nem entender direito o por quê. Aurino sentiu um vazio imenso, uma solidão como nunca havia sentido antes, como se mais que um filho estivesse partindo, para nunca mais.
            Retirou-se para a praia, e ali chorou, quase em silêncio. Era de manhã, o céu nublado, e o vento soprava como sempre. Russo foi até onde estava o amigo e disse:
            - Vou sentir muito a sua falta, na estrada que vou seguir, mas nunca vou esquecê-lo. Aprendi muito, e as lições que se aprende ou se transmite ninguém nos tira. Isto tudo fica em algum lugar.
            Disse isto agachado, ao lado de Aurino. Segurava na mão um galho seco daquela vegetação rasteira que brota à beira do oceano. E completou:
            - Não fique triste, nossa amizade ficará em meu coração para sempre. Então me diga, o que vais fazer por mim?
            E o homem apenas respondeu-lhe:
            - De tarde quero descansar, chegar até a praia e ver. Se o vento ainda está forte, vai ser bom subir nas pedras. Sei que faço isso prá esquecer. Eu deixo a onda me acertar, e o vento vai levando tudo embora. Como você, filho.
            Ao dizer isso, Aurino viu que o jovem rabiscava na areia. Então o Russo se levantou e começou a afastar-se. O Velho disse-lhe:
            - Filho. Boa sorte, que a vida lhe seja leve, mas como é teu nome, afinal?
            O moço sorriu e respondeu:
            - Renato. Renato, o russo é meu nome.
            - Renato. Tu não vais anotar essas coisas que eu te disse, em teu bloquinho?- Disse o pescador com um sorriso triste.
            - Essa eu guardo de cabeça. Só registrei aí, na areia da praia.- Finalizou.
            Acenou e foi embora. Aurino aproximou-se do lugar onde haviam sido rabiscadas suas palavras, mas já não dava mais para ler. Estava quase apagado pelo constante vento do litoral.
            Eles nunca mais se viram.
            Houve um Renato Russo, que não era - Renato, o russo - compositor e músico, ex-líder do grupo Legião Urbana, compôs Vento no Litoral, cujos versos foram inseridos propositalmente nesta ficção, que só não foi real por mero acaso. Ele faleceu, vítima do vírus HIV que dizima indiscriminadamente da face da terra líderes e escravos, nobres e plebeus, gênios e idiotas.