terça-feira, 26 de abril de 2011

O Delegado da Fronteira



Ele nasceu no Alegrete, lá para as bandas do Caaverá, perto da Estância do Ypé. Era noite de temporal, quando a mãe o pariu. A cada relâmpago que cortava a escuridão, as velhas da casa grande       diziam - Avemariajesusmariajosé - em coro.
                Quando a parteira gritou: - Macho!
                As mesmas velhas repetiram:
                - Avemariajesusmariajosé, e arremataram:
                - Não pode dar côsaboa. Só pode virar côsarruim. Noite de tormenta, fermenta o azedume, cruz-credo! Que Deus tenha pena do mundo.
                E assim foi...mais ou menos...
                Cresceu como qualquer piá de estância. Aprendia as lidas do campo, os causos de galpão. Todo o doutrinário do barranco, conhecia de focinho a rabo. Na pequena escola rural, aprendeu as   primeiras letras e outras safadezas que não aprendera na campanha. Deixou a professorinha tão louca, que ela pediu transferência e foi lecionar no convento em Dom Pedrito.
                Anos depois, o vestibular. Adorava os bichos do campo, conhecia um por um, tinha fascínio por todas as espécies da fauna. Pensou que queria ser veterinário, pois sua vida era estar entre os   animais. Por isso, na última hora, na inscrição para as provas da Universidade Federal de Santa Maria, resolveu: Ia se formar advogado.
                Diplomado. De beca e anel no dedo, informou à família que seguiria para a capital. Havia feito concurso para delegado de Polícia. Ante o espanto dos pais, foi explicando:
                - Se tem um jeito melhor para cuidar da bicharada, é na polícia. Pués tem muito gatuno, veado e mariposa à solta. E calavera, que não é, mas parece bicho.
                Veio o curso na Academia em Porto Alegre, de onde jura - “não saiu nem prá mijar na esquina” - até se formar. Enfim, foi designado para Uruguaiana, pois como era sabido pela cúpula policial, tratava-se de uma cidade problemática por causa da fronteira. E só um homem com o seu perfil, para domar e disciplinar, com ordem uma localidade onde as estatísticas criminais eram alarmantes. A decisão da chefia, para a nomeação recaiu na análise criteriosa de seu trabalho de conclusão do curso, intitulado “Cartilha para amansar bochincho quando estoura, e outras rebeliões mais mansas”.
                Ao ser informado sobre a localidade de sua delegacia, sorriu e apenas comentou
                - Viver na fronteira, é como viver na genética.
                Sabia-se, “cruza de um bajeense com uma uruguaianense”, e emendou:
                - Lá vou me sentir mais em casa, do que gato que se aquenta em baixo de fogão à lenha, no inverno.
                Ia seguir à risca os ensinamentos dos catedráticos, o regulamento e o código penal, que lia incansavelmente cada vez que ia ao banheiro, e como dizia aos mais apertados que insistiam para que ele desocupasse a privada do alojamento:
                - Tchê! Segura o esterco, porque as Leis só se decoram com o cérebro tranqüilo e o intestino frouxo. Não me apura, não me apura! 
                Ao ser empossado na delegacia local, foi informando de pronto, que era um Delegado linha-dura, que faria uso de tudo o que aprendera com os colegas no estágio na capital, mas com alguns    aperfeiçoamentos campeiros. Sua primeira providência foi instalar no lugar do tradicional “pau-de-arara”, um palanque de amansar potro, ao que explicou:
                -Prá cavalo ruim, que não foi amansado potranquito, se enfrena a pau, ou vai para o frigorífico virar fiambre. E com malandro, vale a mesma teoria.
                Ficou satisfeito com a primeira mudança, mesmo diante dos olhares assustados do comissário e dos inspetores, da reprovação do padre e com a engolida em seco, do prefeito. Aos olhos da comunidade, a recepção foi de boas-vindas, para os quais parecia um Delegado normal, igual aos outros, a não ser pelo “mango” no punho, as alpargatas meio desfiadas, pelo cigarro de palha sempre no canto da boca e, pelas bombachas, com os fundilhos remendados com um pano floreado, ao que foi avisando para os curiosos que não tiravam os olhos de seu traseiro:
                - Não fiquem olhando muito, pois não jogo nesse time, se o fundilho está floreado é em respeito à mamãe, que cerziu.
                De resto foi deixando claro:
- Esta foi só a primeira adaptação, o resto a gente vai ajeitando despacito, despacito.

Um comentário:

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    De: Moacir Scliar
    Para: gduro@quatroa.com.br
    Data: Terça-feira, 02 de Maio de 2000 15:46
    Assunto: Resposta

    Meu caro Gilnei, obrigado pelos textos. Não há dúvida, você é um cronista talentoso. A tua "Cartilha..." só para dar um exemplo,é ótima.
    Parabéns. Moacyr.

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