quinta-feira, 28 de abril de 2011

No Princípio era o verbo

Seu Ezequiel era funcionário público. Trabalhava para mais de vinte anos na Prefeitura Municipal de Santa Maria. Homem muito educado, dono de uma fluência verbal de fazer inveja ao mais eloqüente orador. Possuía um vocabulário digno de fazer Camões se sentir analfabeto, fora sempre o melhor aluno do Maneco, o tradicional Colégio Manoel Ribas, isso nos tempos em que o Latim era matéria obrigatória no currículo escolar. Respeitadíssimo no bairro onde morava, mais pelo discurso e pelo ar de Sir, do que pelo tamanho. Todos o chamavam de Dr. Ezequiel. Jamais tinham ouvido de sua boca qualquer tipo de impropério. Juravam todos que o homem era inabalável. Sua arma mais poderosa era a diplomacia.
Inconfundível pelo trajar, andava sempre muito bem vestido. Alinhado como ninguém, usava ternos escuros com padrões riscados e, a permanente gravata borboleta que sempre combinava com o lenço aparente no bolso superior do paletó. Outras características de Seu Ezequiel eram, o bigodinho à moda Clark Gable e os cabelos, sempre lambidos com brilhantina, nos quais volta e meia passava um pente esculpido em osso, da marca Carioca.
Casado com D. Elvira, tiveram um filho. O menino chamava-se Éden, para acompanhar o nome bíblico do pai. O garoto tinha cerca de oito ou nove anos, isso no início dos anos sessenta.
Todos os dias ao cair da tarde, Éden reunia os colegas para um bate-bola, no meio da rua. Até aí tudo normal. O problema é, que Seu Ezequiel não admitia que o filho ficasse com a garotada da rua, jogando bola. Pelo menos, quando ele chegasse da repartição, queria o menino dentro de casa. Que fosse como ele tinha sido e se consumisse em estudos de línguas, gramática e aritmética e, é claro, sem faltar o Latim. O português haveria de ser perfeito, como o dele.
O fato ocorreu na Rua André Marques, quase esquina Silva Jardim, no centro da cidade.
Naquela tarde, ao chegar em casa, estava um pouco mais nervoso do que o habitual e, deparou-se com o menino jogando bola no meio da rua. Apesar da irritação, não perdeu a pose, nem a elegância:
            - Éden, filho meu. Retira-te do leito da via pública, pois os veículos poderão vir apanhar-te!
            E o menino, concentrado na jogada, só respondeu:
            - Quê, pai?
            O soberbo funcionário público suplicou:
            -Éden, filho meu. Saia do leito da rua, pois os veículos poderão colhê-lo!
            Sem tirar os olhos da bola, Éden respondeu:
            - Quê, pai?
            Já sem paciência, treplicou:
            - Éden, saia já do meio da rua, para não ser atropelado.
            E o garoto, apenas...
            -Quê, pai?
            Foi aí, que o verbo elegante se foi, dando lugar a uma linguagem mais compreensível:
            - Vem prá dentro fiadaputa, te cago a pau, te arrebento...
            Duas semanas depois, sem ninguém ter mais enxergado qualquer pessoa da família, mudaram-se para lugar incerto. Seu Ezequiel, inclusive, pedira demissão da repartição.
Dizem que pediu emprego na prefeitura de Santiago.

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