sexta-feira, 29 de abril de 2011

Do princípio ao Bom-Fim

Marcavam três horas e dois minutos, no relógio-ponto. Era mais uma madrugada fria de junho. Cumpria aquela jornada, até as três da manhã, no setor de malotes de um banco, diariamente, há cinco longos anos. Bateu o cartão, e saiu. Iniciava-se mais uma vez a velha rotina. Perambulava pelas ruas do Bom-Fim, até o amanhecer. Caminhava cabisbaixo, mão nos bolsos. No trajeto sempre as mesmas bizarras criaturas, refugos da sociedade que ele abominava.
            Odiava o submundo e suas personagens, e imaginava sempre que, um dia, se tornaria um cavaleiro apocalíptico, um aniquilador da subespécie, seria o começo do fim da depravação.
            Na Oswaldo Aranha, em frente ao Pronto Socorro, foi abordado por um sujeito franzino, cabelos sujos e olhos esbugalhados:
            - Ô qualquer cabeça! Cadê o cheiro?
            - Não lido com essas porcarias. - Respondeu-lhe secamente, e seguiu seu caminho.
            Era outro espantalho noturno, que como ele errava pelo bairro a procura de algo, que nem sabia o que era. Entrou no Bar Leblon, e pediu cerveja preta com gema de ovo, “dinamite de boêmio”, como chamavam. Era a única coisa que conseguia engolir àquela hora.
            Sentou-se em uma mesa de canto, e pôs-se a observar os que por ali passavam. Todos, gente da pior espécie. Prostitutas baratas, gigolôs, pederastas, travestis, delinqüentes e viciados. Alguns, com mais de uma das definições juntas. Os rostos variavam. Às vezes, eram figuras repetidas de todas as noites, outras, novidades na área.
            Haveriam de limpar as ruas, para que as pessoas decentes pudessem transitar. Os casais poderiam namorar pela madrugada, sem que quadrilhas de engraxates os assaltassem, enlouquecidos pelo “loló”, na primeira esquina. Aquilo tudo precisava de uma limpeza, uma faxina geral tirando toda a podridão dos cantos, becos e sombras. - Uma arma - Sim, haveria de comprar uma arma. Afinal, alguém teria de começar.
            Já amanhecera há pelo menos uma hora, quando chegou em casa. Era um pequeno apartamento no qual morava há alguns meses. Parou em frente ao espelho e observou seu rosto refletido. Olheiras, uma ligeira calvície se anunciava, e algumas rugas marcavam o lado dos olhos. Tomou um Vallium e deitou-se. Pôs-se a arquitetar mentalmente como faria, para pôr em prática, seu apoio incondicional à humanidade. Adormeceu.                                                    
                                                                     ¬
            Chegou ao escritório pontualmente às dezenove horas. Deu dois telefonemas e, estava dado o primeiro passo, seria um “Taurus 38” com tambor de seis cartuchos. Seria um bom começo. Agora, olhava o relógio constantemente. Finalmente, era quase meia-noite, quando o porteiro veio avisar-lhe. Havia dois policiais à porta do prédio a procurar por ele.
            Recebida a encomenda, estava tudo desenhado para o grande começo.
            Três horas, em ponto, saiu apressadamente a procura de suas vítimas. Sorria entredentes. Pensou se seriam eles vítimas, ou estariam sendo abençoados por ficarem livres daquela vida nojenta. Já na rua, havia caminhado cinco quarteirões, quando um bêbado que passava, pediu-lhe fogo para acender o toco de cigarro que trazia na boca. Rapidamente sacou seu revólver e apontou-lhe. O homem, apavorado, correu como louco gritando. Enquadrou o alvo, engatilhou, mas não teve coragem. Guardou a arma no bolso do casaco, e pôs-se a caminhar apressadamente no sentido oposto. Chegou em casa ofegante. Suava frio.
            Desabou sobre a poltrona, trêmulo. Como podia imaginar que seria tão difícil dar cabo ao sofrimento de alguém, mas aquela eutanásia teria que ser feita. Faltava-lhe condicionamento.
            Agora, passava dias e dias mastigando seus projetos. Já não comia qualquer coisa, havia muito tempo. Passava um mês, desde o episódio com o bêbado. Não tinha aparecido no emprego, depois daquela noite. Certamente já estava desempregado, porém não importava mais, tinha que concluir a “missão divina”que se auto-designou. Não saia mais de casa, à não ser para o realmente necessário para mantê-lo vivo, pois precisava de alguma força para acionar o gatilho.
            Passara horas calculando como faria o trabalho. O resto do dia, passou sorvendo goles e mais goles de coragem, que desciam pela garganta e queimavam seu estomago quase vazio. Seria naquela noite.
            No início da madrugada, vestiu-se. Carregou sua espada justiceira. Encheu o bolso com uma carga extra de munição, e saiu. O local seria escolhido no caminho.
            Chegando no parque da Redenção, quatro mulatos caminhavam lado a lado, em sua direção. Iriam assaltá-lo. Quando já estavam bem próximos, sacou a arma e disparou por cinco vezes. Três deles caíram, e o outro saiu correndo em direção a João Pessoa. Dos caídos, dois estavam inertes e o terceiro, chorava como uma criança, e pedia:
            - Pelo amor de Deus, me ajuda, não me deixa morrer.
            - Agora pede em nome de Deus, esse negro nojento - pensou em voz alta.
            Não havia gastado toda a munição, pois sempre planejara guardar um cartucho para si, em caso de necessidade. Não se entregaria com vida, às feras daquela selva metida a civilizada. Quanto ao que havia fugido, pensou ter sido bom deixá-lo ir, para que contasse aos outros que ele já havia começado sua tarefa.
Seguiu para o Bar Leblon. Entrou e observou atentamente os presentes, medindo um a um. Já tinha recarregado a arma no caminho. Respirou fundo e, começou a disparar contra a miséria, o vício e toda a sujeira mundana. Tinha ferido mortalmente, quatro pessoas. Uma delas ainda se contorcia. Era uma prostituta que agonizava. Gemia e contorcia-se, como que sentindo um mórbido prazer. Naquele momento, achou ridículo como os humanos morriam. Olhos revirados e boca escancarada, como se tentassem aspirar uma porção de ar, agora já impossível de ser alcançada.
            Em fim recuperou a consciência, e deu-se conta do que havia ocorrido. Correu ao banheiro e trancou a porta por dentro.
            Poucos minutos se passaram, e ouviu sirenes. O pânico e o rumor lá fora estavam cada vez maiores. Ouviu quando alguém, no bar, gritava: “O maníaco foi para o banheiro, está armado e é perigoso”.
            E ele pensou em voz alta:
            - Perigoso, eu? Essa gentinha rouba, degrada, privam o direito à liberdade e a segurança, corroem os princípios da decência, e eu sou perigoso?
            Nisto, alguém bateu suavemente à porta, e disse:
            - Vamos, abra. Somos amigos e viemos para ajudá-lo. Você já fez estragos demais por hoje.
            Houve silêncio.
            Observou a seus pés, que o chão estava tomado de urina, e deu-se conta do mau cheiro que exalava das fezes que havia ali:
            - Isto é a cidade grande! - murmurou.
            Apontou o revólver para o próprio rosto, agora pálido, e calculou que não havia outro fim para ele, e disparou.
            Caiu ali, encolhido, com a cabeça mergulhada nos dejetos humanos, que para ele, sempre foram o retrato mais fiel do mundo que passou a odiar. Estava morto. Destruído por sua própria paranóia urbana.
                                              ¬

            De repente, deu um salto na cama, estava apavorado, o corpo encharcado pelo suor, tremia muito. Estava febril. Tivera um pesadelo horroroso. Olhou para o relógio e viu que estava quase atrasado para o trabalho. Como pudera dormir tanto? Arrumou-se rapidamente e saiu.
            Até hoje, só não conseguiu entender como um pesadelo tão terrível, porém apenas um pesadelo, tivesse deixado suas roupas de dormir, com manchas de sangue. Bem, melhor esquecer.

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