sexta-feira, 29 de abril de 2011

Do princípio ao Bom-Fim

Marcavam três horas e dois minutos, no relógio-ponto. Era mais uma madrugada fria de junho. Cumpria aquela jornada, até as três da manhã, no setor de malotes de um banco, diariamente, há cinco longos anos. Bateu o cartão, e saiu. Iniciava-se mais uma vez a velha rotina. Perambulava pelas ruas do Bom-Fim, até o amanhecer. Caminhava cabisbaixo, mão nos bolsos. No trajeto sempre as mesmas bizarras criaturas, refugos da sociedade que ele abominava.
            Odiava o submundo e suas personagens, e imaginava sempre que, um dia, se tornaria um cavaleiro apocalíptico, um aniquilador da subespécie, seria o começo do fim da depravação.
            Na Oswaldo Aranha, em frente ao Pronto Socorro, foi abordado por um sujeito franzino, cabelos sujos e olhos esbugalhados:
            - Ô qualquer cabeça! Cadê o cheiro?
            - Não lido com essas porcarias. - Respondeu-lhe secamente, e seguiu seu caminho.
            Era outro espantalho noturno, que como ele errava pelo bairro a procura de algo, que nem sabia o que era. Entrou no Bar Leblon, e pediu cerveja preta com gema de ovo, “dinamite de boêmio”, como chamavam. Era a única coisa que conseguia engolir àquela hora.
            Sentou-se em uma mesa de canto, e pôs-se a observar os que por ali passavam. Todos, gente da pior espécie. Prostitutas baratas, gigolôs, pederastas, travestis, delinqüentes e viciados. Alguns, com mais de uma das definições juntas. Os rostos variavam. Às vezes, eram figuras repetidas de todas as noites, outras, novidades na área.
            Haveriam de limpar as ruas, para que as pessoas decentes pudessem transitar. Os casais poderiam namorar pela madrugada, sem que quadrilhas de engraxates os assaltassem, enlouquecidos pelo “loló”, na primeira esquina. Aquilo tudo precisava de uma limpeza, uma faxina geral tirando toda a podridão dos cantos, becos e sombras. - Uma arma - Sim, haveria de comprar uma arma. Afinal, alguém teria de começar.
            Já amanhecera há pelo menos uma hora, quando chegou em casa. Era um pequeno apartamento no qual morava há alguns meses. Parou em frente ao espelho e observou seu rosto refletido. Olheiras, uma ligeira calvície se anunciava, e algumas rugas marcavam o lado dos olhos. Tomou um Vallium e deitou-se. Pôs-se a arquitetar mentalmente como faria, para pôr em prática, seu apoio incondicional à humanidade. Adormeceu.                                                    
                                                                     ¬
            Chegou ao escritório pontualmente às dezenove horas. Deu dois telefonemas e, estava dado o primeiro passo, seria um “Taurus 38” com tambor de seis cartuchos. Seria um bom começo. Agora, olhava o relógio constantemente. Finalmente, era quase meia-noite, quando o porteiro veio avisar-lhe. Havia dois policiais à porta do prédio a procurar por ele.
            Recebida a encomenda, estava tudo desenhado para o grande começo.
            Três horas, em ponto, saiu apressadamente a procura de suas vítimas. Sorria entredentes. Pensou se seriam eles vítimas, ou estariam sendo abençoados por ficarem livres daquela vida nojenta. Já na rua, havia caminhado cinco quarteirões, quando um bêbado que passava, pediu-lhe fogo para acender o toco de cigarro que trazia na boca. Rapidamente sacou seu revólver e apontou-lhe. O homem, apavorado, correu como louco gritando. Enquadrou o alvo, engatilhou, mas não teve coragem. Guardou a arma no bolso do casaco, e pôs-se a caminhar apressadamente no sentido oposto. Chegou em casa ofegante. Suava frio.
            Desabou sobre a poltrona, trêmulo. Como podia imaginar que seria tão difícil dar cabo ao sofrimento de alguém, mas aquela eutanásia teria que ser feita. Faltava-lhe condicionamento.
            Agora, passava dias e dias mastigando seus projetos. Já não comia qualquer coisa, havia muito tempo. Passava um mês, desde o episódio com o bêbado. Não tinha aparecido no emprego, depois daquela noite. Certamente já estava desempregado, porém não importava mais, tinha que concluir a “missão divina”que se auto-designou. Não saia mais de casa, à não ser para o realmente necessário para mantê-lo vivo, pois precisava de alguma força para acionar o gatilho.
            Passara horas calculando como faria o trabalho. O resto do dia, passou sorvendo goles e mais goles de coragem, que desciam pela garganta e queimavam seu estomago quase vazio. Seria naquela noite.
            No início da madrugada, vestiu-se. Carregou sua espada justiceira. Encheu o bolso com uma carga extra de munição, e saiu. O local seria escolhido no caminho.
            Chegando no parque da Redenção, quatro mulatos caminhavam lado a lado, em sua direção. Iriam assaltá-lo. Quando já estavam bem próximos, sacou a arma e disparou por cinco vezes. Três deles caíram, e o outro saiu correndo em direção a João Pessoa. Dos caídos, dois estavam inertes e o terceiro, chorava como uma criança, e pedia:
            - Pelo amor de Deus, me ajuda, não me deixa morrer.
            - Agora pede em nome de Deus, esse negro nojento - pensou em voz alta.
            Não havia gastado toda a munição, pois sempre planejara guardar um cartucho para si, em caso de necessidade. Não se entregaria com vida, às feras daquela selva metida a civilizada. Quanto ao que havia fugido, pensou ter sido bom deixá-lo ir, para que contasse aos outros que ele já havia começado sua tarefa.
Seguiu para o Bar Leblon. Entrou e observou atentamente os presentes, medindo um a um. Já tinha recarregado a arma no caminho. Respirou fundo e, começou a disparar contra a miséria, o vício e toda a sujeira mundana. Tinha ferido mortalmente, quatro pessoas. Uma delas ainda se contorcia. Era uma prostituta que agonizava. Gemia e contorcia-se, como que sentindo um mórbido prazer. Naquele momento, achou ridículo como os humanos morriam. Olhos revirados e boca escancarada, como se tentassem aspirar uma porção de ar, agora já impossível de ser alcançada.
            Em fim recuperou a consciência, e deu-se conta do que havia ocorrido. Correu ao banheiro e trancou a porta por dentro.
            Poucos minutos se passaram, e ouviu sirenes. O pânico e o rumor lá fora estavam cada vez maiores. Ouviu quando alguém, no bar, gritava: “O maníaco foi para o banheiro, está armado e é perigoso”.
            E ele pensou em voz alta:
            - Perigoso, eu? Essa gentinha rouba, degrada, privam o direito à liberdade e a segurança, corroem os princípios da decência, e eu sou perigoso?
            Nisto, alguém bateu suavemente à porta, e disse:
            - Vamos, abra. Somos amigos e viemos para ajudá-lo. Você já fez estragos demais por hoje.
            Houve silêncio.
            Observou a seus pés, que o chão estava tomado de urina, e deu-se conta do mau cheiro que exalava das fezes que havia ali:
            - Isto é a cidade grande! - murmurou.
            Apontou o revólver para o próprio rosto, agora pálido, e calculou que não havia outro fim para ele, e disparou.
            Caiu ali, encolhido, com a cabeça mergulhada nos dejetos humanos, que para ele, sempre foram o retrato mais fiel do mundo que passou a odiar. Estava morto. Destruído por sua própria paranóia urbana.
                                              ¬

            De repente, deu um salto na cama, estava apavorado, o corpo encharcado pelo suor, tremia muito. Estava febril. Tivera um pesadelo horroroso. Olhou para o relógio e viu que estava quase atrasado para o trabalho. Como pudera dormir tanto? Arrumou-se rapidamente e saiu.
            Até hoje, só não conseguiu entender como um pesadelo tão terrível, porém apenas um pesadelo, tivesse deixado suas roupas de dormir, com manchas de sangue. Bem, melhor esquecer.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

O Abismo Espiral




O Início
São nestes momentos que a mente navega na introspecção da alma, talvez do espírito, não sei. Aliás, faço muitas confusões sobre o que é alma e espírito. Experimentos dentro da mente são muito mais fáceis do que se imagina. É o que separa os grandes realizadores de pensadores medíocres, que é como me defino, a coragem. Sim, a coragem de vencer a barreira da inércia e partir para a ação.
Certa vez tive oportunidade de ler uma máxima simples, mas marcante, que nunca me saiu da lembrança. Um conjunto de frases de desafio que ficaram impregnadas em minha memória: “Eu conheço pessoas sem ação. E que sempre serão sem ação, pois nunca terminam aquilo que começam”.
Sinto-me horrível ao deparar com essa lembrança, pois parece que estas frases foram escritas sobre mim e para mim. Eu sou o conteúdo das frases. Elas me descrevem em pouquíssimas palavras. É horrível reconhecer, mas é a verdade. Eu sou o inspirador destas afirmações.
Como pode alguém dizer certas coisas, supostamente ao acaso, e atingir tão em cheio certas pessoas, partindo do pressuposto de que somos todos absolutamente diferentes, como as árvores que mesmo sendo da mesma espécie e plantadas no mesmo instante, acabam por ter diferentes números de galhos e folhas? Algumas darão frutos e outras não. Mesmo aqueles nascidos gêmeos univitelinos, apesar de idênticos na aparência têm muitas diferenças.
Ocorre que não somos tão diferentes assim. Somos parte de um grande todo que se fragmentou, para que possamos aprender a nos unir como partes de um quebra-cabeça, sobretudo para entender como a vida funciona. Precisamos de humildade para começar a compreender nossa ignorância sobre a vida. Principalmente quanto à vida real, sobre a qual somos analfabetos.
Recebem asas aqueles que não sabem voar, mas precisam. Justamente para que possam aprender a usar estas ferramentas com as quais foram dotados, tal e qual os pequenos pássaros recém nascidos, para que um dia ganhem as alturas; nadadeiras aos peixes para que possam mergulhar nas profundezas das águas. Os homens receberam uma fração de inteligência. Da inteligência vem a inspiração para questionar e buscar respostas. Todas as respostas são encontradas na imaginação, na criatividade e nas observações. Na capacidade singular de também ser um pouco criador, como o Criador de tudo o que há, seja Ele quem for ou que nome tenha. Se é que pode ser nominado. Exercitando a inteligência e a inventividade, adquirimos sabedoria. E a sabedoria é um privilégio concedido exclusivamente ao homem, pois a ele não foram concedidas asas, mas um dia teria que voar. Nem nadadeiras ou pulmões resistentes aos líquidos, mas um dia ele teria que mergulhar nas profundezas das águas.
Não há ninguém neste mundo que não receba, desde o nascimento e ao longo do curso de sua existência, uma embriagante lavagem cerebral sobre religiões, seitas, crenças, dogmas e rituais litúrgicos, dos quais é quase impossível se desvencilhar. Ensinam-nos sobre pecados e falsas virgens. Que existem santos e anjos de um suposto céu, acima das nuvens. Que neste lugar inatingível aos mortais, enquanto vivos, existe uma divindade suprema. Chamam-lhe por diversos nomes. As seitas e credos mais inúteis e ridículas multiplicam-se como baratas e moscas, talvez pior, como microorganismos que infectam os corpos septicêmicos que acabam por sucumbir. Digo isso, apenas por entender que a espiritualidade nos une em algum ponto do universo; todas as religiões nos dividem.
Nos quatro cantos da terra (que apesar da forma esférica do planeta, possui cantos) entoam-se cânticos e hinos de louvor a ninguém que seja realmente conhecido. Quase tudo por conta de ditos profetas ou visionários que, quem sabe por sua criatividade e imaginação, apregoaram ter recebido mensagens ou ordens expressas de um ser soberano. E para cumprimento destas ordens, há milênios os homens se matam, se degradam, se escravizam, fazem guerras (algumas chamadas até de santas!), se vendem ou são comprados e mentem vergonhosamente para aqueles que chamam de semelhantes. Iludem pela boa oratória e capacidade de liderar e mobilizar pessoas em torno de si. Principalmente os mais humildes, menos afortunados ou que sofrem pelo desespero de doenças ou contingências da vida.
Fala-se em tempo. Esquecendo-se que o relógio foi invenção do homem. Contam-se datas, quando pouquíssimos sabem ou lembram que já existiram muitos calendários. O atualmente usado em todo o mundo ocidental e boa parte do oriental é o chamado gregoriano, criado pelo Papa Gregório. Portanto é uma farsa. Este calendário foi criado com objetivos de política religiosa, determinando por decreto papal, inclusive o dia do nascimento do grande astro desta seita maliciosa chamada de Católica Apostólica Romana, um sujeito chamado Jesus, que se de fato existiu, não teve a trajetória de vida conforme foi romanceada no mais famoso impresso desta empresa que explora há séculos boa parte da humanidade – A Bíblia – que para quem não sabe, significa simplesmente Livro.
Como se não bastasse, mais recentemente na história, uma avalanche de fãs do astro criado pela igreja romana, se reúnem em número cada vez maior e mais assustador, como seguidores de espertalhões que se autodenominam “pastores” e literalmente esfolam a lã de suas ovelhas idiotas. Abominam a igreja de Roma, mas seguem rigorosamente a cartilha escrita por ela. À Saber, a Bíblia foi escrita, organizada, editada e impressa pela igreja católica apostólica romana, depois de ratificada pelo concílio de Nicéia no século IV.
Tudo o que aprendemos sobre deuses e religiões desde nosso nascimento é farsa. O tempo é uma farsa. Sempre foram os homens mentindo para os homens, para dominar e ter poder sobre os outros homens. A fragilidade intelectual de uns, subjugada pela criatividade, iniciativa e, por assim dizer, esperteza de outros, criou uma humanidade débil e cada dia mais desorganizada. Que destrói e rompe seus vínculos com o que tínhamos de melhor e nos fazia diferentes das outras espécies viventes: A natureza humana.
Não espero que alguém acredite nas coisas que estão sendo ditas, pois certamente isto deve ser obra do demônio, satanás ou outro bicho qualquer. Quem sabe bicho-papão? Em outras crenças talvez seja “haram”, pecado, blasfêmia, etc. E sabe por que é difícil aceitar como possíveis estas coisas? Porque todos estão contaminados pela infecção generalizada. Pela lavagem cerebral que todos nós sofremos. 
            Por essas razões, ou pela falta delas, é que de forma quase inevitável nossas vidas precipitam-se neste profundo e, quase inexpugnável, abismo espiral.

Se Deus existe sua obra é perfeita, mas incompleta
            Somos magníficos sonhadores, inventores e descobridores, talvez porque tenhamos sido criados à imagem e semelhança de um Deus. Sendo assim, pela lógica, tem que existir espírito que é pré-requisito para existir intelecto, onde se forma a imaginação que pela própria expressão, indica a formação de imagens na blindagem dos pensamentos, quer existam ou não.
            A obra deste Deus é perfeita, mas incompleta. Se fosse, não haveria sentido a existência do Homem. Não haveria dúvidas. Não teríamos necessidades de respostas, não haveria ansiedade, não avançariam os estudos das ciências. Não seriam tecidos os conceitos de filosofia. Não haveria necessidade de existirem os sacerdotes para apaziguar as almas e iluminarem as ignorâncias dos espíritos, e os psiquiatras já se formariam obsoletos. Todas as coisas e fatos já teriam iniciado, ocorridos e terminados. Não viveríamos no durante, tampouco contemplaríamos o depois.
            Ontem é o hoje que mudou de nome. Amanhã é simplesmente o hoje que ainda não amadureceu. Não existe ontem, nem existirá amanhã. Apenas o predomínio eterno do hoje sem começo, meio e fim.
            Todos nós que acreditamos que existe o tempo, somos prisioneiros de uma metáfora que insistimos em materializar, mesmo que tenhamos a mais absoluta consciência de que não se pode pará-lo, tocá-lo ou medi-lo. Isso mesmo! Quem acredita que essa invenção humana existe de fato, estaria sugerindo, quase determinando que, na hipótese de um fim do mundo, uma parte dele acabaria doze horas antes ou depois.  Inventamos também os pontos cardeais. Como poderia alguém que vive no chamado ponto leste, estar permanentemente no leste se todos sabem que a terra gira sobre o próprio eixo. Se for assim, deve haver um determinado momento em que, quem estava no leste fica no oeste, mesmo sem sair do lugar. Dentro destas mesmas absurdas convenções, há o dilema do norte e do sul. Bem, se o eixo de rotação do planeta é em plano inclinado, ligeiramente à esquerda, segundo dados geográficos e astronômicos, quem vive no norte na verdade está mais para o noroeste e os do sul estão a sudeste, assim por diante. Portanto, nessa óptica caleidoscópica das teorias sobre a vida, universo, tempo e espaço, tudo não passaria de uma grande ilusão criada pelas mentes sonhadoras dos homens, herdada deste Deus, magnífico sonhador.
            Quando digo “Deus, um sonhador”, não faço alusão desrespeitosa ao Grande Arquiteto do Universo, Oxalá, Alah, Eli, Jeová, Ieve,Vishnu ou qual seja o nome pelo qual nos referimos ao Logos da criação, tampouco faço deboche. Simplesmente sublinho essa fantástica virtude que nos foi oferecida e que devemos exercitar, pois de um sonho emergiu toda a vida conhecida e aquela que ainda é desconhecida por nós desta superfície, da qual nos libertamos temporariamente quando nos permitimos sonhar. O sonho é um incrível meio de transporte. Nada inventado pelo homem pode igualar-se a isso. Nele passamos do inferno ao paraíso. Transpomos galáxias; revemos pessoas desaparecidas; imaginamos como desejamos nosso próximo hoje sem a necessidade expressa de estar lá, ainda. O mundo do sonho é mais real do que se possa avaliar, pois nos sonhos é que planejamos e projetamos com imagens em cores, tudo que gostamos ou detestamos. O que desejamos e o que queremos evitar. O primeiro passo para entender os sonhos é acreditar neles, não apenas em sentido de poesia, mas como instrumento real e de vida.

            A consciência do homem ao emergir do sonho, traz versões completas ou parciais das coisas imaginadas. Coisas verdadeiras, mas também fragmentos de sentimentos próprios da natureza humana como o medo, a vergonha, a inveja, a ira e outros sentimentos pobres como esses. Aí se pode incorrer numa falha perigosa: A ilusão.
            Como células degeneradas de um câncer, a ilusão destrói a construção dos benefícios promovidos pelos sonhos. Os sonhos, como ponto de partida para a vida, ensejam aspirações para a existência dos indivíduos que, regressando do estado de retiro da consciência, ficam aptos a realizar seus sonhos projetados, ou não. Dependendo apenas de sua livre vontade. Se preferirmos, podemos chamar de livre arbítrio.
 Aqueles que se perdem na penumbra das ilusões e lá permanecem, têm dificuldades de discernimento entre o que ainda é imagem sonhada e o que já foi realizado. A alguns desses convencionamos chamar de loucos.
Pode parecer ironia, mas praticamente tudo que regula nossas vidas, todos os conceitos, todas as teorias, todas as fórmulas foram desenvolvidas por loucos. Pitágoras, Hipócrates, Sócrates, Platão, Descartes, Lavoisier, Copérnico, Einstein, Freud, Van Gogh, o doidão do Mozart, Beethoven que além de louco era surdo. Isso sem falar que alguns sacerdotes à serviço do reinado do Vaticano criaram os malucos dos apóstolos que juraram de pés juntos que viram Jesus três dias depois de morto, e mais, ainda comeu com eles. Pode? Agora, vamos ser sinceros. Quem é mais louco? Os loucos que sonharam, imaginaram e formaram a nossa sociedade e transformaram a humanidade, ou nós que seguimos ao pé-da-letra tudo aquilo que eles nos fizeram acreditar e nós simplesmente engolimos?
Então, como ficaria muito chato admitir, nós resolvemos outorgar-lhes o título de gênios, como reverência, para disfarçar nossa estupidez.
Um estado mais agravado da ilusão é o das alucinações. Este sim, estado patológico do sonhador que, tendo permanecido no mundo dos sonhos perdeu contato com o exterior, desenvolvendo um estado agudo de ilusão, assim perdendo a capacidade de reconhecer diferenças entre o estado de corpo e o estado de espírito. Os alucinados são conduzidos a essa condição por situações traumáticas tanto espontaneamente, quanto acidentalmente dependendo das circunstâncias que conduzem o indivíduo a esse estado. No primeiro caso, temos aqueles que se drogam, no segundo os que sofrem acidentes físicos. Porém ambos experimentam capítulos de inferno do qual pode não haver retorno.
Pois bem, se Deus existe, Ele é a essência do sonhador, o alucinado só pode ser o contraponto, ou seja, o demônio. Mas Deus acima de tudo, por convenção, é o Pai de toda a criação. Tudo Dele provém. Tudo é Sua obra, tanto o bem, quanto o mal. O bem só se justifica porque existe o mal, assim como o homem só foi criado para dar continuidade à obra Divina. Pode-se então sugerir que o sonho é o equilíbrio perfeito, não está no corpo, mas não está fora do corpo. Surge da sinergia entre alma e espírito, nem lá, nem cá. Está no meio.
Sendo assim, não fica difícil admitir que o Homem seja a dualidade concebida pelo sonho divino: O bem e o mal; O sonho e a alucinação; Anjo e demônio. Tão harmônico quanto o homem e a mulher, que se completam para reproduzirem e dar continuidade à vida.
O pensamento é um estado superficial do sonho. Para sonhar é necessário encontrar o ponto médio, o meio. E então meditar, isto é, agir com o pensamento em equilíbrio perfeito entre a consciência e a inconsciência. Distante o bastante do corpo, que não sofra interferência do mundo exterior, mas próximo o suficiente para não abandoná-lo, e assim usufruir o aprendizado que isto proporciona. Principalmente paz e equilíbrio. 
            Quando o pensamento vaga é o espírito que o conduz pelo mundo real – o mundo onde não existem fronteiras. Assim, nos afastamos do corpo sem deixá-lo. Isto porque existe a âncora vital da anima para que a matéria não entre em processo de liquidação. A anima é o que chamamos de alma, aquela que anima o corpo físico. É o elo entre o corpo e o espírito.
Se não for desse modo, jamais poderemos acreditar em Deus, pois na prática ele apenas existe em nossos sonhos.
Nota do Autor:
Confesso que tentei por várias vezes avançar. Desisti até o presente momento. Talvez não seja uma desistência permanente, apenas uma pausa para exercitar a coragem necessária para dizer o que deve ser dito, ao meu modo, do meu jeito... Talvez, como diria Frank Sinatra: My Way.

Esta é, sem dúvida, uma obra incompleta. Quero dizer, a minha!
 

No Princípio era o verbo

Seu Ezequiel era funcionário público. Trabalhava para mais de vinte anos na Prefeitura Municipal de Santa Maria. Homem muito educado, dono de uma fluência verbal de fazer inveja ao mais eloqüente orador. Possuía um vocabulário digno de fazer Camões se sentir analfabeto, fora sempre o melhor aluno do Maneco, o tradicional Colégio Manoel Ribas, isso nos tempos em que o Latim era matéria obrigatória no currículo escolar. Respeitadíssimo no bairro onde morava, mais pelo discurso e pelo ar de Sir, do que pelo tamanho. Todos o chamavam de Dr. Ezequiel. Jamais tinham ouvido de sua boca qualquer tipo de impropério. Juravam todos que o homem era inabalável. Sua arma mais poderosa era a diplomacia.
Inconfundível pelo trajar, andava sempre muito bem vestido. Alinhado como ninguém, usava ternos escuros com padrões riscados e, a permanente gravata borboleta que sempre combinava com o lenço aparente no bolso superior do paletó. Outras características de Seu Ezequiel eram, o bigodinho à moda Clark Gable e os cabelos, sempre lambidos com brilhantina, nos quais volta e meia passava um pente esculpido em osso, da marca Carioca.
Casado com D. Elvira, tiveram um filho. O menino chamava-se Éden, para acompanhar o nome bíblico do pai. O garoto tinha cerca de oito ou nove anos, isso no início dos anos sessenta.
Todos os dias ao cair da tarde, Éden reunia os colegas para um bate-bola, no meio da rua. Até aí tudo normal. O problema é, que Seu Ezequiel não admitia que o filho ficasse com a garotada da rua, jogando bola. Pelo menos, quando ele chegasse da repartição, queria o menino dentro de casa. Que fosse como ele tinha sido e se consumisse em estudos de línguas, gramática e aritmética e, é claro, sem faltar o Latim. O português haveria de ser perfeito, como o dele.
O fato ocorreu na Rua André Marques, quase esquina Silva Jardim, no centro da cidade.
Naquela tarde, ao chegar em casa, estava um pouco mais nervoso do que o habitual e, deparou-se com o menino jogando bola no meio da rua. Apesar da irritação, não perdeu a pose, nem a elegância:
            - Éden, filho meu. Retira-te do leito da via pública, pois os veículos poderão vir apanhar-te!
            E o menino, concentrado na jogada, só respondeu:
            - Quê, pai?
            O soberbo funcionário público suplicou:
            -Éden, filho meu. Saia do leito da rua, pois os veículos poderão colhê-lo!
            Sem tirar os olhos da bola, Éden respondeu:
            - Quê, pai?
            Já sem paciência, treplicou:
            - Éden, saia já do meio da rua, para não ser atropelado.
            E o garoto, apenas...
            -Quê, pai?
            Foi aí, que o verbo elegante se foi, dando lugar a uma linguagem mais compreensível:
            - Vem prá dentro fiadaputa, te cago a pau, te arrebento...
            Duas semanas depois, sem ninguém ter mais enxergado qualquer pessoa da família, mudaram-se para lugar incerto. Seu Ezequiel, inclusive, pedira demissão da repartição.
Dizem que pediu emprego na prefeitura de Santiago.

Cartilha para amansar bochincho, quando estoura...

Cartilha para amansar bochincho, quando estoura

e outras rebeliões mais mansas.

Este texto é o que foi mencionado pelo saudoso imortal, meu "Padrinho" Moacyr Scliar. Depois dele, as noites tem mais uma estrela.

Autor: Futuro Delegado da fronteira

            § 1 - Bochinchos em fandangos, bailes e outras festividades em locais fechados:
            a) No caso de fandango, a regra número um é: preservar o gaiteiro, pois o tocador é santo. De fácil identificação, pois normalmente é mulato e velhusco. Mas, não se engane, normalmente, é cobra criada em peleja;
            b) Identifique a causa da desavença: Normalmente é china, morena, de venta rasgada, tem pose de dona de rodeio, anca larga, olhar de cegar até quem tem catarata. É, em geral, a mulher do dono do galpão ou seu achego de invernada. Encontrando a bugra, aparte-a para local isolado do fervo;
            c) É terminantemente proibido se engraçar com a fulana;
            d) Em caso de tiroteio, deite-se no chão, porque o santo é de barro;
            e) Abra um clarão, no meio do fumaréu, defendendo, na curva do braço esquerdo, que deve estar envolto no pala, qualquer tentativa de pranchaço. Caso o milico seja canhoto, vale a razão inversa;
            f) Ao ver os fardados, os nervosinhos geralmente ficam com cara de anjinhos, mas no caso da milícia paisana, nem sempre são reconhecidos, por isso, se necessário dê um ou dois tiros de garrucha para o alto, e ninguém sairá ferido, porque a palha-de-santa-fé aceita bem os balaços;
            g) A recomendação retro, fará alguns se cagarem nas calças, mas pode haver algum valentão no meio da turba, por isso grite bem alto: - Acabou o banzé, é a polícia, se alguém se fresquear, vai levar chumbo prá valer, porque jendarme é só do outro lado da ponte;
            h) Acalmados os ânimos, é condição sine qua non, mandar a bailanta continuar, porque se não for tomada esta providência, a bosta se espalha prá valer. Aí, só a guarda nacional prá segurar o entrevero que vai se formar. E, afinal, o bochincheiro tem que ganhar a vida, para poder pagar os extras da milícia, e defender o leite das crianças;
            i) Antes de se retirar, os de serviço têm que dançar uma marca de vanerão, em respeito às pessoas de bem, ali presentes, e ao gaiteiro, que afinal de contas, não teve nada a ver com o tentame de folia;
            j) Aceite, sem receio, os tragos de canha, oferecidos pelo dono da copa, e leve para tomar no postinho. Primeiro: porque ninguém é de ferro. Segundo: porque seria um desaforo com o dono da casa. Terceiro e último, deste item: que seria um desperdício não provar um contrabando de primeira linha, até porque, ele não seria besta de oferecer produto de segunda, justo para a polícia.
            § 2 - Rebeliões em penitenciária e cadeiões:
            a) Nunca negocie com os rebelados, pois eles sempre têm um bom negócio para lhe oferecer, e você pode cair em tentação.
            b) Nunca use cachorros, nestes conflitos, pois os bichinhos podem se sentir em casa com os amotinados. São todos da mesma espécie.
            c) É proibido usar gás lacrimogêneo, pois o produto pode induzir os rebeldes a ficarem doidões. Use esterco de vaca, bem seca. Ponha fogo, e jogue no meio da rebelião. Não existe melhor remédio para espantar mosquito borrachudo, e intoxicar detento que está criando caso.

            d) O antigo método de deixar os amotinados sem comida, é besteira da grossa! Encha a pança deles de comida, e da boa, pois é justo aí, que eles ficarão com preguiça, e serão facilmente dominados.
            e) Se a rebelião for motivada por excesso de lotação da cadeia, faça-os dormir ao relento, para que fiquem chuleando as estrelas e madrugando as luas; se estiver frio de renguear cusco, melhor ainda, então eles saberão que cela apertada é melhor do que amanhecer encarangado de geada, e ter que esquentar o saco, à bem de conseguir mijar direito.
            § Parágrafo Único - Outras sugestões poderiam ser inseridas neste projeto de manual, mas achei por bem ficar só com essas, que são boazinhas, porque se não, o pessoal dos Direitos Humanos ia querer mandar me capar, e eu gosto do jeito que a natureza me fez. Afinal, não nasci boi. Nasci colhudo.

terça-feira, 26 de abril de 2011

O Delegado da Fronteira



Ele nasceu no Alegrete, lá para as bandas do Caaverá, perto da Estância do Ypé. Era noite de temporal, quando a mãe o pariu. A cada relâmpago que cortava a escuridão, as velhas da casa grande       diziam - Avemariajesusmariajosé - em coro.
                Quando a parteira gritou: - Macho!
                As mesmas velhas repetiram:
                - Avemariajesusmariajosé, e arremataram:
                - Não pode dar côsaboa. Só pode virar côsarruim. Noite de tormenta, fermenta o azedume, cruz-credo! Que Deus tenha pena do mundo.
                E assim foi...mais ou menos...
                Cresceu como qualquer piá de estância. Aprendia as lidas do campo, os causos de galpão. Todo o doutrinário do barranco, conhecia de focinho a rabo. Na pequena escola rural, aprendeu as   primeiras letras e outras safadezas que não aprendera na campanha. Deixou a professorinha tão louca, que ela pediu transferência e foi lecionar no convento em Dom Pedrito.
                Anos depois, o vestibular. Adorava os bichos do campo, conhecia um por um, tinha fascínio por todas as espécies da fauna. Pensou que queria ser veterinário, pois sua vida era estar entre os   animais. Por isso, na última hora, na inscrição para as provas da Universidade Federal de Santa Maria, resolveu: Ia se formar advogado.
                Diplomado. De beca e anel no dedo, informou à família que seguiria para a capital. Havia feito concurso para delegado de Polícia. Ante o espanto dos pais, foi explicando:
                - Se tem um jeito melhor para cuidar da bicharada, é na polícia. Pués tem muito gatuno, veado e mariposa à solta. E calavera, que não é, mas parece bicho.
                Veio o curso na Academia em Porto Alegre, de onde jura - “não saiu nem prá mijar na esquina” - até se formar. Enfim, foi designado para Uruguaiana, pois como era sabido pela cúpula policial, tratava-se de uma cidade problemática por causa da fronteira. E só um homem com o seu perfil, para domar e disciplinar, com ordem uma localidade onde as estatísticas criminais eram alarmantes. A decisão da chefia, para a nomeação recaiu na análise criteriosa de seu trabalho de conclusão do curso, intitulado “Cartilha para amansar bochincho quando estoura, e outras rebeliões mais mansas”.
                Ao ser informado sobre a localidade de sua delegacia, sorriu e apenas comentou
                - Viver na fronteira, é como viver na genética.
                Sabia-se, “cruza de um bajeense com uma uruguaianense”, e emendou:
                - Lá vou me sentir mais em casa, do que gato que se aquenta em baixo de fogão à lenha, no inverno.
                Ia seguir à risca os ensinamentos dos catedráticos, o regulamento e o código penal, que lia incansavelmente cada vez que ia ao banheiro, e como dizia aos mais apertados que insistiam para que ele desocupasse a privada do alojamento:
                - Tchê! Segura o esterco, porque as Leis só se decoram com o cérebro tranqüilo e o intestino frouxo. Não me apura, não me apura! 
                Ao ser empossado na delegacia local, foi informando de pronto, que era um Delegado linha-dura, que faria uso de tudo o que aprendera com os colegas no estágio na capital, mas com alguns    aperfeiçoamentos campeiros. Sua primeira providência foi instalar no lugar do tradicional “pau-de-arara”, um palanque de amansar potro, ao que explicou:
                -Prá cavalo ruim, que não foi amansado potranquito, se enfrena a pau, ou vai para o frigorífico virar fiambre. E com malandro, vale a mesma teoria.
                Ficou satisfeito com a primeira mudança, mesmo diante dos olhares assustados do comissário e dos inspetores, da reprovação do padre e com a engolida em seco, do prefeito. Aos olhos da comunidade, a recepção foi de boas-vindas, para os quais parecia um Delegado normal, igual aos outros, a não ser pelo “mango” no punho, as alpargatas meio desfiadas, pelo cigarro de palha sempre no canto da boca e, pelas bombachas, com os fundilhos remendados com um pano floreado, ao que foi avisando para os curiosos que não tiravam os olhos de seu traseiro:
                - Não fiquem olhando muito, pois não jogo nesse time, se o fundilho está floreado é em respeito à mamãe, que cerziu.
                De resto foi deixando claro:
- Esta foi só a primeira adaptação, o resto a gente vai ajeitando despacito, despacito.